Pulsão Afetiva no Gesto Criador
A Produção de Paulina Pinsky
Por Lisbeth Rebollo Gonçalves
A exposição que Paulina Pinsky apresenta em Tel Aviv , na Gallery of International Naïve Art, traz ao público um conjunto de 40 obras, produzidas nos últimos 10 anos, em que se destaca a riqueza plástica e simbólica de seu trabalho artístico, marcado por forte potencial criativo. Em sua obra plástica, que vem sendo bem acolhida no âmbito da produção naïf internacional, ressalta-se a poética lírica e a forte imaginação.
Enveredemos, em nossa análise, por um caminho instigante para a leitura crítica de seu trabalho, observando como se dá a construção de sua imagem plástica e a elaboração dessa poética.
Na fenomenologia, designa-se a imagem como um excesso de imaginação, por meio do qual se acentua a dialética do oculto e do manifesto. Através da imaginação, é possível chegar até um ponto além da realidade. A imaginação trabalha com liberdade o espaço, o tempo, a natureza, todas estas dimensões de uma só vez; e, através do excesso, surgem idéias que são sonhos e devaneios sem limites, cujo testemunho, na pintura, tem o poder de “dar vida às formas”.
É o que acontece na prática artística de Paulina Pinsky. Ela nos diz: “Pinto visões e sensações, crio as paisagens interiores e invento as exteriores”. Em seu mundo inventado, aparecem as cenas dos seus ambientes de íntima convivência: os interiores da casa – o lugar mais perfeito de abrigo da subjetividade – e do ateliê – o lugar do trabalho de criação. A natureza é a da Mata Atlântica, patrimônio natural mundial, onde ficam algumas das mais lindas praias do litoral brasileiro. Suas composições articulam os registros de objetos, figuras humanas – muitas vezes o nu feminino – e animais – seu pequeno cão basset é uma presença freqüente. Todo o seu mundo simbólico é impregnado de sentimento existencial e mostra uma dinâmica de articulação dialética entre o interior e o exterior.
A pulsão afetiva move o gesto criador, um gesto que se expande para além da tela, ultrapassando os seus limites e invadindo a moldura, que igualmente é pensada como espaço a ser trabalhado. Em alguns casos, o preparo do suporte já inclui a moldura, escolhida como campo por onde também se desenvolverá a criação.
Muitas vezes, Paulina se apropria de objetos, geralmente pedaços de madeira cuja forma desperta seu interesse, material recolhido de construções demolidas. Estas formas tridimensionais se juntam às telas e se tornam, igualmente, parte do suporte que acolherá a pintura. Com freqüência, elas motivam, justamente por seu formato ou textura, o nascimento de determinada composição. Desta maneira, seus trabalhos, muitas vezes, situam-se no limite entre a pintura e o objeto, seriam tridimensionais. Embora com forte espírito “naïf”, por sua pulsão direta, livre, sincera e espontânea, as obras são também muito contemporâneas, embrenhando-se nos interlimites da pintura e do objeto.
Elementos com forte demarcação cultural aparecem na construção simbólica. Há muito de identidade brasileira nos perfis de arquitetura –os ambientes internos e o externo das casas até as construções com palha de coqueiro que vêm da antiga tradição indígena, ou o mobiliário barroco – biombos, baús ou cômodas com nichos ou retábulos, usados antigamente para a pintura sacra, mas que lhe servem para inscrever paisagens. Da iconografia da cultura brasileira, surgem rendas, passamanarias ou sianinha, tecidos florais e redes, traduzindo a diversidade étnica das pessoas.
Mas como costuma acontecer em países onde a interculturalidade é um fator social marcante, a experiência plástica de Paulina Pinsky – que é brasileira, apesar de sua ascendência européia e judaica – mostra também uma forte dimensão cultural “híbrida”. Encontramos em seu trabalho elementos simbólicos que remetem a antigas tradições européias e orientais. Isto aparece no modo de inscrever as imagens pintadas, pois algumas telas têm seu espaço plástico trabalhado como o de antigos ícones. A artista faz uso freqüente da imagem de tapetes em suas pinturas – eles invadem até as cenas de praia e os jardins e têm função determinante na definição do espaço plástico ou se inscrevem como elementos de textura na composição.
Paulina vale-se, com certa freqüência, do ponto de vista aéreo para construir a pintura e, neste caso, toda a composição apresenta-se ao nosso olhar como um imenso tapete. Outras vezes, é a deformação objetiva, apoiada talvez numa concepção puramente estética e decorativa, um pouco à maneira dos nabis, que dá vazão à sensibilidade subjetiva da artista, realçando sua expressão afetiva existencial.
O tempo e espaço na obra de Paulina Pinsky, marcados por suas vivências, registram memórias que brotam espontânea e livremente, com toda pureza, como expressão de um estado primeiro e, neste sentido, primitivo.
Lisbeth Rebollo Gonçalves
Presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte
2004 (por ocasião da exposição na Galeria GINA, Tel Aviv – Israel)
Emotional Impetus in the Creative Process
The Work of Paulina Pinsky
The Paulina Pinsky exhibition, at GINA Gallery of International Naíve Art in Tel Aviv, brings to the public a collection of some forty works, produced over the last ten years, which are notable for their artistic and symbolic richness as well as for their powerful creative potential. Her work, which is being well received in international naíve art circles, is striking in its poetical lyricism and intense imaginativeness.
Our analysis will attempt to stimulate a critical reading of her work, by examining the process by which she composes her paintings and develops her poetics.
In phenomenology, an image signifies an excess of the imagination, by means of which the dialectic accent between the seen and the hidden is foregrounded. Through the imagination, it is possible to arrive at a point beyond reality. Unfettered, the imagination works, all at once, on the dimensions of space, time and nature; and, through excess, ideas emerge which are unrestricted dreams and fantasies, the testimony of which, in painting, has the power to ‘give life to forms.’
This is what happens in the work of Paulina Pinsky. She tells us “l paint visions and feelings, l create inner landscapes and invent outer ones”. In her invented world, intimate scenes from her daily life appear: depictions of the inside of her house, the most perfect place for the subject to shelter, and of the artist’s studio, where the work of artistic creation takes place. The natural world in her paintings is that of the Mata Atlântica, a world heritage site where some of the most beautiful beaches on the Brazilian coastline can be found. Her compositions articulate the uncovering of objects, human figures (often female nudes), and animals: her little basset hound makes frequent appearances. All her symbolic world is imbued with existential feeling and reveals a dynamic of dialectic articulation between the inner and the outer world.
An emotional impetus fuels the creative process, a process which extends beyond the canvas, breaking through its limits and spilling out into the frame, which is also intended to form part of her workspace. In some cases, the canvas is prepared at the same time as the frame, and is selected to function as another space in which the work can unfold.
Paulina often appropriates objects, generally pieces of wood whose shape awakens her interest, such as material collected from the sites of demolished buildings. These three-dimensional shapes fuse with the canvas and become part of the material on which the painting will appear. Often, through their shape or texture, objects such as these provide the seeds of inspiration for a particular composition. As such, her work, in occupying a space between painting and objects, could be said to be three-dimensional. And although the direct, free, sincere, and spontaneous force behind her work gives it a strong ‘naíve’ spirit, it is also highly contemporary, penetrating as it does the interstices between painting and objects.
Strong cultural markers appear in the composition of her symbolic world. There is much that is typically Brazilian in the forms of her buildings – from the insides and outsides of her houses to her depictions of ancient, indigenous dwellings made with the use of coconut palms. There are also baroque furnishings – screens, trunks, and chests of drawers with recesses or altarpieces, employed in the past to display holy paintings, but used by the artist as spaces for landscapes. Elements from the iconography of Brazilian culture, including lacework, crochet, trimming, floral patterns and netting, also crop up in her work, reflecting the ethnic diversity of the Brazilian people.
However, as it usually happens in countries with strongly multicultural identities, the artistic output of Paulina Pinsky (who, despite her European and Jewish ancestry, is Brazilian) reflects the culturally hybrid nature of her homeland. We find in her paintings symbolic elements, which allude to ancient European and Eastern traditions. This is evident in the way she composes her paintings: in some of them, the artistic space hás been worked on in a manner that recalls the ancient icons. Images of rugs make frequent appearances: they can be seen even in beach and garden scenes, playing a key role in defining her artistic space, or simply bringing a textural element to the work.
The artist often employs an aerial point of view, in this way making the whole composition appear to our eyes like an immense rug. On other occasions, she uses distortion, a technique that she perhaps employs purely for aesthetic or decorative reasons, rather as the Nabis did. In this way, she finds an outlet for her subjective sensibility, and sharpens her emotional and existential expression.
In the paintings of Paulina Pinsky, time and space, shaped by her experience, bring forth memories, which appear freely and spontaneously, in their purest form, as an expression of a primary, and, in one sense, primitive state.
Lisbeth Rebollo Gonçalves
President of the Brazilian Association of Art Critics
(A.B.C.A.)